Para início de conversa você deve estar se perguntando: o que esse sujeito foi fazer na Bielorússia? Explico: estudo russo há algum tempo e surgiu a oportunidade de fazer um curso de vinte dias do idioma em uma universidade de Minsk, capital do país. Os custos do curso e da hospedagem eram quase nulos, principalmente se comparados aos da Rússia, então pensei: por que não? Imbuído desse espírito, junto a um pequeno grupo de brasileiros, no ano passado, arrumei as malas e fui à Bielorússia, ou Belarus, como alguns chamam.
Antes da viagem pouco sabia sobre o país. Meu conhecimento se resumia a poucas informações sobre a situação política, uma ditadura de muitos anos; a língua falada, russo, apesar do bielorusso também ser um idioma oficial; e, as características físicas das pessoas, todas brancas e quase sempre de olhos azuis, praticamente cópias da Gisele Bündchen espalhadas pelo país.
Depois de uma noite de viagem a bordo de um trem da década de 1950, saindo de Varsóvia, cheguei a Minsk. Tenho que confessar que apesar de já familiarizado com o alfabeto, ao sair da estação e ver tudo escrito em caracteres cirílicos, o choque foi inevitável, fiquei um pouco assustado. Na rua, ao ver o famoso Lada, carro muito utilizado na União Soviética, tive um pouco a sensação de estar voltando no tempo. Primeira parada, alojamento da universidade, no qual eu passaria meus próximos vinte dias. O lugar estava em obra e, como eu descobriria depois, boa parte da cidade também. O verão é aproveitado para isso. Era poeira para todos os lados, mas o local era agradável, tinha até geladeira e elevador, apesar desses, seguramente, terem mais idade que os meus pais. Depois de estacionar as malas me dirigi à universidade para fazer a inscrição no curso. O prédio era de dar inveja a qualquer universidade pública brasileira, tudo extremante limpo e novo. Esse primeiro dia foi longo e eu fui finalmente apresentado à famosa burocracia, que pouco deve ter mudado desde os tempos soviéticos.
O idioma logo se mostrou uma grande barreira. Meus conhecimentos da língua russa ainda eram um tanto reduzidos, e absolutamente ninguém, pelo menos entre as pessoas com as quais tive algum contato, falava inglês ou francês. Por isso, tive que aturar alguns semblantes não muito amistosos. No mercado, por exemplo, quando a caixa perguntava algo e eu dizia, em russo, “não entendo”, logo vinha a careta que tanto se repetiu, mas que ao fim da viagem eu já achava graça.
Eis que um dia, para meu espanto, o grupo de brasileiros do qual eu fazia parte foi levado a uma outra universidade, para conhecer um grupo de estudantes de relações internacionais que estudavam português. O espanto foi ainda maior ao ver que o português deles era muito bom, fluência perfeita, porém mais próxima do português lusitano. Conhecer aquelas pessoas foi como uma calmaria de sorrisos no mar de caretas bielorussas. Exageros causados pela distância à parte, eram pessoas muito agradáveis e extremante simpáticas, que estavam cheias de questões e curiosidades, o que, aliás, se fazia presente em ambas as partes. Com essas pessoas a língua já não era uma barreira e assim pude saciar meu lado antropólogo, frustrado até então.
Conheci, enfim, vários lugares da cidade tendo como guias esses “luso-bielorussos”. Porém, como alegria de brasileiro dura pouco, uma menina desse grupo, no meio de uma conversa, me disse: “Você tem que tomar cuidado, há alguns anos atrás você nem poderia andar por alguns lugares daqui. Existem muitos grupos fascistas. Agora eles diminuíram um pouco, porque alguns jovens formaram grupos anti-fascistas para combatê-los, mas mesmo assim tome cuidado”. O que ela, em seu português, chamava de fascistas eram neonazistas. Eu já esperava algo assim, porque tinha lido que na Rússia existem muitos grupos desse tipo, mas logicamente fiquei preocupado.
É interessante relatar que contei o ocorrido a uma amiga do grupo de brasileiros, e ela sem entender nada, me perguntou: “Como assim, porque você teria que tomar cuidado?”. Acontece que para a “democracia racial” brasileira, eu sou moreno, uma denominação que as pessoas usam para escapar do que todos parecem ter medo de dizer aqui: “negro”. Cresci ouvindo minha avó dizer um ditado que parece que só serve para a Bielorússia, apesar dela nunca ter ido mais longe que o nordeste do Brasil. Dizia ela, para se referir aos pretensos morenos: “Passou de branco, preto é”. Minha amiga brasileira nunca deve ter ouvido esse ditado.
Minha curiosidade antropológica me obrigou a ir a um lugar que eu já imaginava que seria um tanto complicado: um jogo de futebol. Apesar de não ser um esporte muito popular por aquelas bandas, o futebol na Rússia é muito associado a torcidas racistas e lá não poderia ser muito diferente. Vestido com esse espírito antropológico, cheguei ao estádio, e para meu espanto o policiamento lá era maior do que o destinado aos clássicos nos estádios do Rio de Janeiro. Dezenas de policias e militares cercavam o estádio e no seu interior tinha quase um policial para cada duas pessoas. O público, seguramente, não passava de quinhentos torcedores. O lugar, como em qualquer país civilizado, era marcado e me sentei bem longe da torcida “organizada”. Esta, apesar de pequena, cantava o tempo todo e fazia algumas saudações um tanto quanto parecidas com aquelas do alemão de bigodinho. A frente desta torcida, estavam estendidas diversas faixas. Todas faziam referência à violência e, no meio delas, escrito em letras bem grandes, havia o dizer “White Power”. Na mesma hora pensei indignado: “Pra isso eles sabem inglês, já na hora que eu vou ao mercado…”. Brincadeiras à parte, fiquei um pouco preocupado. A salvo pela grande distância, assisti ao jogo sem problemas, só fiz questão de sair um pouco antes do fim. Nada diferente de um clássico carioca.
Entretanto, durante a minha estada na Bielorússia, o neonazismo não passou de um fantasma que me assombrou durante parte da viagem. Nada de concreto ocorreu, pois a grande maioria das pessoas de lá pensam bem diferente desses grupos. O que aconteceu foi um grande sucesso das brasileiras e brasileiros com o sexo oposto, ou com o mesmo, variando de acordo com a orientação de cada um. Só uma única vez, vi um grupo de jovens devidamente paramentados no estilo (ou seria falta dele) neonazista: cabeças raspadas, suspensórios e coturnos. Passei ao lado do grupo, mas eles sequer olharam com maior atenção para mim.
Conhecida internacionalmente como a última ditadura européia, a Bielorússia até guarda algumas semelhanças com o Brasil, como por exemplo a maneira como as pessoas encaram a política, mas isso é um outro assunto que já não cabe aqui. Assim, quem quiser conhecer um lugar que foge ao senso comum das viagens, a Bielorússia pode ser uma opção. Afinal em que lugar do mundo você vai encontrar um McDonald´s em plena Rua Lênin, ou uma loja da Nike na Rua Karl Marx? Com o tempo percebi que as caretas e a grosseria eram um mal que afetava somente as pessoas que trabalhavam no comércio, mas não me pergunte por quê. Quem estiver interessado, consiga o visto, esqueça o inglês, treine bem a mímica e boa viagem.
Por Filipe Sarmento, com a colaboração de Ana Luíza Reyes.